“Precisamos aplicar os métodos usados pela luta curda e as lutas na América do Sul para iniciar um movimento revolucionário que esteja realmente presente para as pessoas e não apenas para algumas ideias abstratas”.
Na 2ª Conferência da Juventude no Oriente Médio, tivemos a oportunidade de conversar com José, da Colômbia, que atualmente vive na Europa Central sobre a situação política na Venezuela e na América do Sul, a esquerda revolucionária e a relação entre a situação na Venezuela e a de Rojava.
Como você acha que a Conferência da Juventude do Oriente Médio pode estar relacionada à situação na América do Sul e quais você acha que são os maiores problemas enfrentados pela América do Sul no momento?
Então, basicamente, temos falado sobre o imperialismo durante a conferência. Em particular sobre a maneira como o sistema mundial está reforçando a violência imperialista no Oriente Médio. Falando de maneira geral, conectar as discussões aqui à situação na América do Sul não é difícil, pois as discussões que estamos tendo não são únicas, elas podem ser aplicadas à muitas outras regiões do mundo, principalmente no sul global. As pessoas de esquerda na América Latina estão atualmente tendo discussões muito semelhantes às que estão sendo realizadas aqui por causa da similaridade situacional. Neste momento existe o perigo de uma guerra na América do Sul. Se a guerra acontecer, será entre os EUA, seus aliados na América do Sul e a Venezuela. Esta é uma discussão particularmente interessante a ser realizada em Rojava, já que os estados que estão agindo assim e produzindo uma guerra na América Latina são praticamente os mesmos atores estatais que temos aqui em Rojava, embora as alianças variem um pouco.
No caso de Rojava, o principal ator que quer começar a guerra é a Turquia, e sabemos que a Turquia é um país membro da OTAN. No entanto, em Rojava, temos uma situação incomum em que os EUA são um fator importante que está impedindo a Turquia de iniciar uma guerra (pelo menos no momento) devido à sua presença aqui (que obviamente está relacionada a seus próprios interesses imperialistas). Do outro lado, temos o governo russo, que está apoiando principalmente o regime de Assad.
Na Venezuela, são os Estados Unidos quem têm o principal interesse de invadir por seus recursos petrolíferos, que são os maiores do mundo, antes mesmo da Arábia Saudita. Os EUA são aliados de regimes fascistas em toda a América do Sul, principalmente no Brasil (Bolsonaro) e na Colômbia (Duqoe). Duqoe é basicamente o fantoche de Álvaro Uribe, que era o presidente no início dos anos 2000, um presidente que era famoso por seus contatos muito próximos com o paramilitarismo e o narcotráfico colombiano. Então, enquanto estamos vendo essa forte guinada à direita na Europa e em muitos lugares ao redor do mundo, vemos o mesmo na América do Sul no Brasil e na Colômbia (como já mencionamos), no Chile sob Piñera, na Argentina sob Macri e Lenin Moreno no Equador. Devido à essa oscilação para a direita, agora temos uma situação em que muitos desses governos estão apoiando a vontade dos Estados Unidos de invadir a Venezuela por diversos motivos.
A primeira razão para isso é o fato de elas mesmas serem fantoches do imperialismo dos EUA, mas seu objetivo secundário é capitalizar a oportunidade de desviar a atenção internacional de si mesmas e das situações em seus próprios países. Na Colômbia, há quase 500 camaradas / líderes sociais de comunidades afro-colombianas, indígenas e camponesas, sindicatos, organizações de direitos humanos, organizações feministas, organizações lgbt e assim por diante que foram mortos no último ano e meio. Isso equivale a aproximadamente uma pessoa aliada por dia. Neste caso, estamos falando sobre o assassinato sistemático dos movimentos sociais, especialmente depois que o Estado colombiano traiu o processo de paz e os acordos de paz de 2016 e assim podemos ver que esta situação é muito ruim para as pessoas de esquerda e está piorando.
Uma guerra que começa contra a Venezuela antes de tudo e, se volta para a Venezuela, mas será uma guerra continental porque os atores de direita na América do Sul apoiam os EUA nesta guerra, o que aumenta a opressão dos próprios Estados sobre os movimentos socialistas, comunistas e anarquistas e, particularmente movimentos liderados por povos indígenas. Além disso, a situação na Venezuela é muitas vezes mal entendida pelos grupos de esquerda, como apenas uma guerra para derrubar o atual presidente Nicolás Maduro e seu governo. O governo de Maduro é o sucessor do governo de Hugo Chávez e sua revolução, a revolução bolivariana, que chegou ao poder em 1998.
Por um lado, há uma semelhança muito forte entre a luta do povo curdo pela liberdade e pela democracia radical e as lutas dos movimentos esquerdistas na América Latina. Por exemplo, no Chile e na Argentina, há os mapuches que lutam contra os estados de lá e que têm seus próprios mártires regularmente por causa da violência dos estados chileno e argentino, também o movimento dos sem-terra no Brasil, que agora está sendo atacado pelo estado fascista e muitos outros movimentos que estão sendo oprimidos em toda a América do Sul. Ao mesmo tempo, temos esse perigo de guerra, como a guerra imperialista, então podemos dizer que isso também cria uma semelhança entre Rojava e a América do Sul, já que temos o crescimento da resistência principalmente indígena, que está cada vez mais conectada aos afro-americanos. Comunidades latinas, grupos de estudantes, grupos feministas (o movimento feminista tem sido muito grande agora, especialmente na Argentina, mas também no Peru e no Chile sendo muito grande e muito radical também e não é o tipo de feminismo liberal que temos na Europa) que estão sendo ameaçados pela eclosão da guerra. Mas o crescimento desses movimentos radicais é realmente positivo.
Por outro lado, como já mencionei, há esse aumento no número de movimentos de direita e, infelizmente, a direita está ganhando agora, há um aumento do fascismo e da violência contra o povo. Na Colômbia, os acordos de paz que levaram ao desarmamento das FARC (a maior organização guerrilheira da Colômbia que liderou uma guerra de 60 anos contra o Estado) tiveram que entregar suas armas para iniciar um processo político porque o povo colombiano estava cansado da guerra, havia mais de 12 milhões de refugiados dentro da Colômbia por causa disso. O governo traíra completamente esse acordo e os territórios que foram esvaziados pelos guerrilheiros foram ocupados pelos paramilitares colombianos, e assim grandes corporações multinacionais entraram e mataram pessoas com capital de todo o mundo, especialmente da Europa e dos EUA, é claro. Há também, um completo apagão da mídia na Colômbia sobre essas coisas, assim como no resto do mundo, então existem muitas, muitas razões pelas quais nós não devemos apenas comparar essas lutas, mas conectar as discussões que estamos tendo sobre diferentes lugares no Sul Global. Tanto os meios que estão sendo usados ontra o povo do Sul Global quanto os meios que estão sendo usados pelo povo para lutar contra o imperialismo e a violência do Estado estão lentamente se tornando mais universais e agora estamos em um ponto em que isso pode não mais ser ignorado. Na Venezuela, a questão é que houve a revolução bolivariana em 1998.
Não foi uma revolução em termos de comunismo pleno e destruição do Estado. De fato, seus resultados foram muito semelhantes aos resultados da revolução cubana. Então, houve muito progresso, nos campos dos benefícios sociais e da educação, esse tiposde coisa… Muitas pessoas não sabem que a revolução bolivariana foi uma revolução do governo bolivariano, então você pode dizer que é alguma forma de socialismo de Estado, mesmo que eles próprios não digam que são socialistas. É claro que as contradições internas do estado estão causando problemas. Há corrupção e dependência do negócio do petróleo (porque é de onde vem todo o dinheiro que o estado venezuelano usa para seus programas sociais). Por causa da guerra econômica contra a Venezuela que tem sido travada há mais de uma década, a economia está realmente quebrada, há inflação muito alta e há anos tem havido muita miséria.
Infelizmente, por causa da mídia imperialista, isso está sendo retratado como a verdadeira crise humanitária na América do Sul, quando na verdade a situação da maioria dos países da América Latina não é melhor. Em alguns, é realmente pior. Por exemplo, existe uma região na Colômbia, bem ao lado da fronteira com a Venezuela, no Caribe, chamada La Guajira. É uma região que é muito importante para a economia colombiana porque é de onde vem a maior parte do carvão produzido e exportado. Por causa dessa indústria, toda a água daquela região está completamente contaminada e não pode mais ser consumida. As comunidades indígenas e afro-colombianas lá estão basicamente famintas porque não há acesso a água potável e comida. As pessoas passam fome todos os dias e isso não está sendo falado. Esta é uma catástrofe humanitária que está acontecendo e os EUA estão enviando ajuda humanitária no valor de 50 milhões de dólares para a Venezuela, que está esperando na fronteira agora, só para explicar como as coisas na Venezuela são ruins e que a ajuda poderia ser usada em toda a América Latina.
Dito isto, não há comparação entre o valor da ajuda que está sendo enviada para a Venezuela e o dano que o embargo causou à economia, especialmente porque equipamentos médicos não puderam entrar por causa do embargo. Então, é como uma grande peça de teatro. Um grande problema é que é difícil acessar informações sobre o que está acontecendo na Venezuela, mesmo na América do Sul essas informações não estão acessíveis. Na Europa ainda menos, e em Rojava, também sinto que as pessoas não estão cientes desta situação, o que é compreensível, mas acho que é o papel dos internacionalistas fazer essa ligação e falar sobre essas questões para dar a base à solidariedade internacional.
É claro que a questão é difícil de como seria essa solidariedade internacional porque em Rojava estamos em uma zona de guerra e na América Latina há guerra, ou pelo menos a ameaça de guerra também.
Qual você acha que seria a forma mais útil que a solidariedade poderia tomar na Europa e na América do Norte?
Os EUA estão liderando essa agressão contra a Venezuela e a América Latina, mas também os Estados dentro da União Européia se apressaram em se posicionar com o golpe de direita na Venezuela sob Guaido, então é como uma agressão imperialista geral onde os países europeus são tão culpados quanto os Estados Unidos.
Na minha opinião, o papel dos esquerdistas nos EUA, no Canadá e na Europa são basicamente os mesmos. Antes de mais nada, as pessoas têm que entender o que realmente está acontecendo, como quais são as relações entre as diferentes forças que estão destruindo a América do Sul. Portanto, as pessoas precisam obter esse conhecimento, pressionar seus próprios governos e aumentar a conscientização em seus próprios países; mais importante, devemos tentar entender a guerra econômica que vem ocorrendo contra a Venezuela, que é a principal razão (não a única, é claro que há corrupção estatal, não quero negar isso) pela qual a economia venezuelana quebrou. Isso tem sido completamente negligenciado pela esquerda nos últimos anos, apesar do fato de que talvez seja mais possível abordar a questão da economia da Venezuela nos lugares da modernidade capitalista, já que estamos falando de uma crítica direta e de uma ação direta contra a União Européia e governos norte-americanos que causaram essa crise econômica.
Além disso, temos que aumentar a consciência do que uma guerra irá significar se vier até a Venezuela, temos que deixar claro que a guerra não será apenas contra o povo venezuelano, mas uma guerra contra o povo da América do Sul em geral. É muito provável que essa guerra se espalhe para Cuba, Nicarágua, Bolívia, os outros, digamos, redutos esquerdistas da região, que têm suas próprias contradições, mas ainda todos os benefícios que resultam de um governo de esquerda. Esses benefícios serão completamente esmagados se esses países forem forçados a entrar num sistema de neoliberalismo e sub-ordenação ao sistema imperialista.
Apesar disso, não devemos esquecer que estes países não estão isentos do quadro imperial. Devemos sempre criticar o imperialismo norte americano, mas também não devemos esquecer que há países como a Venezuela, por exemplo, onde o governo é fortemente auxiliado pelo governo russo, que obviamente é outro jogador imperialista. Esta é também a razão pela qual os EUA não se mudaram para a Venezuela nos últimos dois anos. Trump na verdade queria começar uma guerra na Venezuela mais cedo, mas ele foi retido por seus conselheiros militares devido ao fato de que as relações de poder na Venezuela não são muito favoráveis para o tipo de guerra que os EUA gostariam de travar no país. Isso se deve ao fato de que a revolução bolivariana na verdade armava o povo, então é outra coisa que torna a situação semelhante à situação aqui no Curdistão, ou especificamente em Rojava. Portanto, não seria apenas uma guerra contra um governo e uma força militar (que também é muito grande e ajudada pela Rússia), mas sim uma guerra contra o povo – pessoas que estão muito comprometidas com a revolução. Houve muitas declarações de diferentes grupos na Venezuela, incluindo o governo, de que uma guerra contra a Venezuela seria um segundo Vietnã para os EUA. A geografia da Venezuela e do Vietnã é muito semelhante, e as pessoas vão lutar, e eles vão lutar arduamente. Seria uma guerra muito desagradável para os imperialistas.
Os EUA estão atualmente ajudando a ala direita, a oposição fascista na Venezuela, que se apresenta como uma alternativa de direita à ditadura de Maduro. Esta oposição tem sido fortemente financiada e levantada pelos EUA há mais de 10 anos, talvez 15 anos. Também está bem documentado que essas mesmas forças têm sido muito ativas em manifestações violentas que são explicitamente racistas contra venezuelanos negros e explicitamente violentas contra qualquer um que não esteja em sua linha. Isso geralmente significa que há muita violência contra as partes mais pobres do país que apoiam o governo. Esse apoio está diminuindo um pouco agora, mas ainda assim, a maioria das pessoas está do lado da revolução. Do meu ponto de vista, eu diria que, embora muitas pessoas agora tenham críticas ao governo da Venezuela (incluindo pessoas que trabalham dentro do governo que querem ter essa crítica tradicional e autocrítica e eu sei que isso também é uma prática comum em Rojava) eles prefeririam lutar contra problemas dentro de seu próprio movimento do que desistir da revolução todos juntos. Há também pessoas de fora, apenas o povo venezuelano comum, que vai se ater à sua revolução e quer defendê-la. Portanto, há essa situação triangular, onde pode acontecer que uma invasão leve a uma derrota tanto da direita quanto do governo e crie, como que um retorno à revolução. Este é o tipo de relação de poder que temos na Venezuela.
Os esquerdistas em todos os lugares devem saber que devem apoiar, obviamente o povo revolucionário, os conselhos revolucionários da Venezuela que se opõem à direita, em oposição à guerra, em oposição ao embargo, mas também têm suas críticas ao governo de Maduro e sua má gestão.
Para conectar isso ao caso curdo: é muito triste ver como o governo de Maduro começou a trair o internacionalismo construindo fortes conexões com o Irã e a Turquia, então hoje a Turquia é um dos apoiadores do governo de Maduro contra os EUA, quando obviamente vai contra todos os sentidos de solidariedade internacional e consciência das lutas dos povos oprimidos do mundo. É por isso que é muito importante enfatizar que, embora seja uma situação difícil na Venezuela, podemos resumir dizendo: a crítica ao governo é importante, mas os benefícios da revolução precisam ser defendidos.
O povo da Venezuela se defenderá de qualquer forma, e nós temos que ficar ao lado do povo, não ao lado da chamada oposição democrática, que é essencialmente fascista.
Nos conte rapidamente como você se sente em Rojava e como é esse espaço?
Eu tenho conhecimento de Rojava e da revolução aqui desde a luta por Kobane. Na América do Sul também está ficando cada vez mais conhecido, há conexões muito interessantes que estão sendo feitas lentamente, particularmente entre as lutas feministas que estão se tornando mais conscientes da revolução das mulheres aqui no Curdistão. Também há muitas semelhanças culturais que tornam realmente fácil entender o que é a luta no Curdistão, embora esteja muito distante e algumas pessoas nunca tenham ouvido falar dos curdos antes. É uma coisa linda que essa consciência esteja sendo criada; de lutas que são as mesmas em essência, mesmo estando muito longe umas das outras, estar aqui para mim é como uma afirmação disso, que a revolução aqui é um projeto que precisa ser defendido.
É também uma revolução que tem muitas semelhanças com algumas experiências que tivemos na América do Sul. É tão poderosa devido ao fato de que o movimento de Abdullah Öcalan foi capaz de aplicar a teoria revolucionária à realidade regional , cultural e política no Curdistão. Isso é algo que aconteceu na América do Sul, começando com Mariátegui e o partido comunista peruano no início do século XX. Também é assim que muitos movimentos comunistas de jovens e movimentos de juventude socialistas estão sendo retomados na América do Sul. Creio que este é um bom exemplo de como esses movimentos devem ser adotados na Europa, não apenas usando Rojava ou na América Latina ou em qualquer outro lugar como uma idéia romântica do que poderia ser alcançado. As pessoas projetam muita esperança nessas revoluções, mas devemos realmente aprender que nossa tarefa é fazer o mesmo, não é o mesmo que reproduzir exatamente a mesma coisa, mas aplicar o mesmo método de estudar nossa própria realidade e estudar nossa própria história estando conscientes de nossa própria identidade e superando essas discussões muito liberais de identidade e internacionalismo, que estão realmente na superfície na Europa. Eles não se aprofundam no que as pessoas precisam da sociedade, nós precisamos aplicar os métodos usados pela luta curda e lutas na América do Sul para realmente começar um movimento revolucionário que está lá para as pessoas e não apenas para algumas ideias abstratas que foram expressas por alguns caras antigos há centenas de anos.